Desde algum tempo vasculho minha memória em busca de acontecimentos que marcaram minha infância e adolescência. Percorro todo o meu histórico emocional na expectativa de encontrar uma lembrancinha sequer, que sirva ao menos para eu escrever uma crônica, que seja, ou no máximo um conto. Dia desses aí, quando eu andava meio cabisbaixa e relutante quanto a acreditar que tenho um papel a desempenhar nesse mundo, nessa vida, uma amiga querida e possuidora de uma das vozes mais belas que um dia já cantou para mim, especialmente para mim, decidiu que com seu canto, e uma música bem escolhida, iria me livrar da tal sensação incômoda que me deixava, até então, cabisbaixa e tristonha. A música ainda não havia sido escolhida - até pediu um tempo para pensar - mas se não fosse pelo motivo besta de estarmos, mais uma vez, cantando uma à outra as mesmas músicas do tempo em que o Chico ainda compunha música de verdade, talvez ela tivesse desistido e cantado, sei lá, “It’s raining man”...
Foi com alguma apreensão que esperei a decisão pela música que, provavelmente, me traria de volta à vida... E foi com alguma “esperança” que ela vislumbrou por um momento que meus olhos voltassem a carregar um pouco daquela... esperança! que em outros tempos os fazia brilhar. – No fundo acredito que, ao menos para a amiga querida, o fato dos meus olhos terem trocado a esperança por alguns sonhos desfeitos e muitas incertezas acabava por não fazer bem à minha alma. – A música, ela dizia, tinha que ter algo de belo, algo de nostálgico, melancólico até, mas que me remetesse a uma alegria, mesmo que passageira. – Ela sabia que seria passageira. Sendo pessoa que é, e tendo a sensibilidade que tem, ela sabe que no decorrer do nosso trajeto as alegrias são como as flores daquelas árvores que só florescem quando mais ninguém acredita que elas poderão florir.
Vamos lá, disse a amiga, vou começar a cantar. Preste atenção: “Laralaralalalá, laralaralalalá...” e então se pôs a cantar aquela música cuja melodia não me era estranha. Foi só ouvir o começo e uma lembrança imediatamente pulou diretamente da minha memória para o meu coração. Uma lembrança, talvez a única, e das mais felizes que tenho do tempo em que eu era criança. Mas criança mesmo, entre quatro e cinco anos de idade. Lembrei-me de tudo: do portão de casa, das grades desse portão, da rua onde ficava nossa casa, do caminhão que o vizinho sempre estacionava entre a nossa casa e a dele... Fui me lembrando aos poucos do bairro, da vizinhança... Quando passeava mentalmente pela vizinhança, me lembrei do quartel da polícia militar que ficava a poucos metros de casa. O quartel! Foi então que tudo ficou claro.
Já ouvi essa música, e muitas vezes, aliás, mas nunca ela mexeu tanto comigo. Sempre que a ouvia sentia um comichãozinho na alma, não sei explicar o que é esse tal comichãozinho, mas sei que sentia. E sei também que esse comichãozinho tinha o poder de me deixar melhor... Vagamente uma lembrança me assaltava e talvez por medo, ou distração, nunca mergulhava profundamente no que ela, a música, poderia representar para o meu eu.
Na quadra onde morávamos havia um quartel da polícia militar, como disse anteriormente. Não sei se isso ainda existe, - até porque faz muito tempo que não vejo um quartel de polícia das antigas – mas naquela época esse batalhão tinha sua própria banda. Isso, uma banda, mais vulgarmente conhecida como “fanfarra” (ou charanga, para os mais antigos que eu). E essa banda tocava todas as manhãs de domingo. Eles nunca falhavam: chuva, sol, neblina, sol, sol, sol (no interior chove muito pouco), chuvisco... eles sempre estavam lá, com seus uniformes de gala e seus instrumentos reluzentes. E eu, com toda minha inocência pueril, acompanhava com os olhinhos atentos, e brilhando de tanta esperança, a passagem da banda na rua de nossa casa. Ficava lá, com as mãozinhas na grade do portão, percebendo cada mínimo detalhe que ajudava a compor aquilo que para mim, no alto de meus cinco anos, era um espetáculo. Lembro-me bem das roupas que eles vestiam: calças brancas, coladinhas no corpo, botas pretas, uma espécie de blazer, vermelho, com os botões dourados. Lembro também de haver umas correntes no blazer, que saiam de uma ponta da vestimenta, fazendo uma barriga - formando como se fosse um colar –, e depois se ligava à outra ponta, mas sem ultrapassar a área dos botões. Eram seis correntes, três de cada lado (e os botões no meio). Lembro-me também das ombreiras, que eram bem visíveis. E usavam uma espécie de chapéu, mas os detalhes me fugiram da memória visual. Ah! E luvas brancas, eles usavam luvas brancas!
Meu pai sempre me acordava perto da hora da banda passar. E era sempre uma festa, pois eu já sabia, mesmo não sendo pessoa adulta, que naquele dia a minha bandinha particular faria para mim seu show domingueiro. Com as mãozinhas na grade e os olhos atentos, meus ouvidos serviam apenas para acompanhar melodias que para mim, àquela altura da vida, ainda eram desconhecidas. Muitas das músicas tocadas por eles devem compor a maior parte do repertório de muitas bandas, fanfarras, charangas, que existiam e ainda existem pelo Brasil afora. Muitas das músicas se fossem tocadas hoje para mim, em alguma apresentação, eu certamente conheceria. Mas provavelmente não conseguiria reconhecê-las como sendo parte integrante do repertório daquela banda do quartel que ouvia quando criança, e aos domingos. Uma, porém, me marcou. E me marcando fui capaz de reconhecê-la tão logo minha amiga pôs-se a cantá-la pra mim: “Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor...”. Sabia que essa música tinha alguma coisa, sabia! – pensei eu, emocionada. E então pulei de cabeça e coração naquela lembrança que a cada momento apresentava-se mais clara para mim. Uma sensação nostálgica, boa, salutar até. Lembro-me da cumplicidade em que meu pai me pegava no colo, sempre atento à hora da passagem da banda, e me levava para frente de casa como se aquilo fosse um ritual instituído, através da cumplicidade muda, por nós.
Sempre desconfiei da minha sensibilidade. Sabia que ela me acompanhava desde criança, e que não era apenas fruto dos meus anos de vida e convívio social. Claro que ela foi, e está sendo, apurada a cada novo dia, a cada nova descoberta que faço, a cada livro revelador que leio, a cada nova amizade que faço, a cada olhar que troco com as pessoas que amo... Mas isso não quer dizer que quando criança, e ainda imune às emoções e suas facetas psicológicas, eu não tivesse sensibilidade suficiente para saber o que se passava ao meu redor. E foi através dessa constatação que pude me lembrar com mais precisão do que sentia quando via e ouvia a banda passar e cantar a música que me motivou a escrever essa crônica, ou conto, que seja...
Do alto, apesar de estar sempre no nível no chão, dos meus cinco anos, eu ouvia aquela musica e com prazer me deliciava daquela visão que tinha das pessoas ouvindo a banda passar, assim como dizia a própria música. “A minha gente sofrida despediu-se da dor, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor...” Eu sabia que por um momento “o homem sério que contava dinheiro parou” pra ver a banda passar. Sabia que “o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançou...”. Sabia também que “a moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela”, ou que a menina agarrou as grades do portão, pensando que a banda era só dela... Eu sabia de tudo isso. Sabia, inclusive, que “minha cidade toda se enfeitou pra ver a banda passar, cantando coisas de amor”. “Mas para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou. E cada qual no seu canto e em cada canto uma dor, depois da banda passar, cantando coisas de amor...”. E eu, como que já pressentindo que a vida seria cheia de altos e baixos, e que teria que contar com esse tipo de alegria para suportar a dor que por vezes me açoitaria a alma, me recolhia no colo de meu pai, curtindo um pouco mais da música que ele insistia em cantar para mim com sua voz rouca. Despedia-me daquele momento, encerrava meu ritual domingueiro e, dotada de certa expectativa, fitava com o destino um próximo domingo, uma próxima banda, uma próxima alegria.
Foi com alguma apreensão que esperei a decisão pela música que, provavelmente, me traria de volta à vida... E foi com alguma “esperança” que ela vislumbrou por um momento que meus olhos voltassem a carregar um pouco daquela... esperança! que em outros tempos os fazia brilhar. – No fundo acredito que, ao menos para a amiga querida, o fato dos meus olhos terem trocado a esperança por alguns sonhos desfeitos e muitas incertezas acabava por não fazer bem à minha alma. – A música, ela dizia, tinha que ter algo de belo, algo de nostálgico, melancólico até, mas que me remetesse a uma alegria, mesmo que passageira. – Ela sabia que seria passageira. Sendo pessoa que é, e tendo a sensibilidade que tem, ela sabe que no decorrer do nosso trajeto as alegrias são como as flores daquelas árvores que só florescem quando mais ninguém acredita que elas poderão florir.
Vamos lá, disse a amiga, vou começar a cantar. Preste atenção: “Laralaralalalá, laralaralalalá...” e então se pôs a cantar aquela música cuja melodia não me era estranha. Foi só ouvir o começo e uma lembrança imediatamente pulou diretamente da minha memória para o meu coração. Uma lembrança, talvez a única, e das mais felizes que tenho do tempo em que eu era criança. Mas criança mesmo, entre quatro e cinco anos de idade. Lembrei-me de tudo: do portão de casa, das grades desse portão, da rua onde ficava nossa casa, do caminhão que o vizinho sempre estacionava entre a nossa casa e a dele... Fui me lembrando aos poucos do bairro, da vizinhança... Quando passeava mentalmente pela vizinhança, me lembrei do quartel da polícia militar que ficava a poucos metros de casa. O quartel! Foi então que tudo ficou claro.
Já ouvi essa música, e muitas vezes, aliás, mas nunca ela mexeu tanto comigo. Sempre que a ouvia sentia um comichãozinho na alma, não sei explicar o que é esse tal comichãozinho, mas sei que sentia. E sei também que esse comichãozinho tinha o poder de me deixar melhor... Vagamente uma lembrança me assaltava e talvez por medo, ou distração, nunca mergulhava profundamente no que ela, a música, poderia representar para o meu eu.
Na quadra onde morávamos havia um quartel da polícia militar, como disse anteriormente. Não sei se isso ainda existe, - até porque faz muito tempo que não vejo um quartel de polícia das antigas – mas naquela época esse batalhão tinha sua própria banda. Isso, uma banda, mais vulgarmente conhecida como “fanfarra” (ou charanga, para os mais antigos que eu). E essa banda tocava todas as manhãs de domingo. Eles nunca falhavam: chuva, sol, neblina, sol, sol, sol (no interior chove muito pouco), chuvisco... eles sempre estavam lá, com seus uniformes de gala e seus instrumentos reluzentes. E eu, com toda minha inocência pueril, acompanhava com os olhinhos atentos, e brilhando de tanta esperança, a passagem da banda na rua de nossa casa. Ficava lá, com as mãozinhas na grade do portão, percebendo cada mínimo detalhe que ajudava a compor aquilo que para mim, no alto de meus cinco anos, era um espetáculo. Lembro-me bem das roupas que eles vestiam: calças brancas, coladinhas no corpo, botas pretas, uma espécie de blazer, vermelho, com os botões dourados. Lembro também de haver umas correntes no blazer, que saiam de uma ponta da vestimenta, fazendo uma barriga - formando como se fosse um colar –, e depois se ligava à outra ponta, mas sem ultrapassar a área dos botões. Eram seis correntes, três de cada lado (e os botões no meio). Lembro-me também das ombreiras, que eram bem visíveis. E usavam uma espécie de chapéu, mas os detalhes me fugiram da memória visual. Ah! E luvas brancas, eles usavam luvas brancas!
Meu pai sempre me acordava perto da hora da banda passar. E era sempre uma festa, pois eu já sabia, mesmo não sendo pessoa adulta, que naquele dia a minha bandinha particular faria para mim seu show domingueiro. Com as mãozinhas na grade e os olhos atentos, meus ouvidos serviam apenas para acompanhar melodias que para mim, àquela altura da vida, ainda eram desconhecidas. Muitas das músicas tocadas por eles devem compor a maior parte do repertório de muitas bandas, fanfarras, charangas, que existiam e ainda existem pelo Brasil afora. Muitas das músicas se fossem tocadas hoje para mim, em alguma apresentação, eu certamente conheceria. Mas provavelmente não conseguiria reconhecê-las como sendo parte integrante do repertório daquela banda do quartel que ouvia quando criança, e aos domingos. Uma, porém, me marcou. E me marcando fui capaz de reconhecê-la tão logo minha amiga pôs-se a cantá-la pra mim: “Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor...”. Sabia que essa música tinha alguma coisa, sabia! – pensei eu, emocionada. E então pulei de cabeça e coração naquela lembrança que a cada momento apresentava-se mais clara para mim. Uma sensação nostálgica, boa, salutar até. Lembro-me da cumplicidade em que meu pai me pegava no colo, sempre atento à hora da passagem da banda, e me levava para frente de casa como se aquilo fosse um ritual instituído, através da cumplicidade muda, por nós.
Sempre desconfiei da minha sensibilidade. Sabia que ela me acompanhava desde criança, e que não era apenas fruto dos meus anos de vida e convívio social. Claro que ela foi, e está sendo, apurada a cada novo dia, a cada nova descoberta que faço, a cada livro revelador que leio, a cada nova amizade que faço, a cada olhar que troco com as pessoas que amo... Mas isso não quer dizer que quando criança, e ainda imune às emoções e suas facetas psicológicas, eu não tivesse sensibilidade suficiente para saber o que se passava ao meu redor. E foi através dessa constatação que pude me lembrar com mais precisão do que sentia quando via e ouvia a banda passar e cantar a música que me motivou a escrever essa crônica, ou conto, que seja...
Do alto, apesar de estar sempre no nível no chão, dos meus cinco anos, eu ouvia aquela musica e com prazer me deliciava daquela visão que tinha das pessoas ouvindo a banda passar, assim como dizia a própria música. “A minha gente sofrida despediu-se da dor, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor...” Eu sabia que por um momento “o homem sério que contava dinheiro parou” pra ver a banda passar. Sabia que “o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançou...”. Sabia também que “a moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela”, ou que a menina agarrou as grades do portão, pensando que a banda era só dela... Eu sabia de tudo isso. Sabia, inclusive, que “minha cidade toda se enfeitou pra ver a banda passar, cantando coisas de amor”. “Mas para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou. E cada qual no seu canto e em cada canto uma dor, depois da banda passar, cantando coisas de amor...”. E eu, como que já pressentindo que a vida seria cheia de altos e baixos, e que teria que contar com esse tipo de alegria para suportar a dor que por vezes me açoitaria a alma, me recolhia no colo de meu pai, curtindo um pouco mais da música que ele insistia em cantar para mim com sua voz rouca. Despedia-me daquele momento, encerrava meu ritual domingueiro e, dotada de certa expectativa, fitava com o destino um próximo domingo, uma próxima banda, uma próxima alegria.
4 comentários:
Em busca do tempo perdido com recordações proustianas?
ps
http://pt.wikipedia.org/wiki/Em_Busca_do_Tempo_Perdido
Lindinho, meigo!!!!!
Senti uma nostalgia mesmo sem ter vivido isso!
Beijocas da sua fã! :-)
Brunaaa! Este texto é lindo!
A música tem a ver com a banda da sua casa e tem a ver com os momentos de alegria - e um dos seus foi relembrar a música - e vc juntou td isso de uma forma mto legal! Qtas conexões...!
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