terça-feira, 17 de março de 2009

CARTA A H.

“Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto”
Tabacaria (15-1-1928) Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Deveria começar essa carta dizendo, ou melhor, escrevendo sobre a chuva que acaba de despencar na cidade de São Paulo: queria mesmo que ela também tivesse dado as caras aí pro teu lado - não pela água em si, que de fato é uma benção dos deuses molhados quando estes resolvem se banhar, mas pelo simples fato de que ela serve pra limpar toda aquela poeira que fica acumulada no canto do pensamento e nos coloca pra refletir, enquanto escorre pela vidraça, no quanto somos tolos em não aproveitar os cavalos (bem) selados que passam por nós todos os dias. Pois bem, deveria começar a carta pela chuva... mas sinceramente a chuva seria apenas uma desculpa bem formulada pra te falar sobre os cavalos selados. E de cavalos selados creio que tanto você quanto eu entendemos muito bem.

Não faz muito tempo desisti de sonhar. Sim, e por mais que seja triste, é a verdade do momento. Cansei dessa mini-certeza boba doida de pensar que um sonho e uma boa intenção são capazes de construir uma vida digna. Muita gente, ao saber dessa minha falta de esperança para com o misterioso do universo, andou me chamando de fria e calculista. Sim, me acusaram até de pragmática racional e sem coração – não que eu não concorde com o “pragmático racional” que mora em mim, mas meu coração vai muito bem. Eu não sei se você me compreende, creio que sim, mas é que depois de levar tanto tombo e a troco de nada, aprendi a dar aos incidentes a medida exata que eles merecem ter: nem mais, nem menos. E como os sonhos costumam ter um “super-dimensionamento” dos nossos desejos mais íntimos, achei por bem suprimi-los de minha vida – pelo menos por enquanto.

Porém, e por um outro lado mais, digamos, romântico, compactuo totalmente com Álvaro de Campos quando ele diz que não é nada, nunca será nada e não pode querer ser nada, mas que à parte disso, tem em si todos os sonhos do mundo. Eu compreendo e compactuo com o humano que há no pensador, e me deixo, dessa forma, levar pela doce ilusão de que, mesmo não sendo nada, terei dentro de mim todos os anseios e desejos e loucuras que possam existir no mundo. Nas pessoas. Em você. Em mim.

Todas as vezes em que leio Tabacaria sinto-me como se estivesse em um palco, declamando essa obra de arte para uma platéia invisível, mas que de tão real na minha divagação, essa platéia chegaria a aplaudir-me devido à ênfase que daria a alguns versos. O mundo é para quem nasce para o conquistar, e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. E nessa parte eu estufaria o peito e, como em uma certeza que de tão líquida e límpida escorre pelas mãos, eu simplesmente deitaria minha máscara de não-sonhadora e me conformaria com a razão que eu suponho ter.

Não sou gênio, apesar de você insistir no contrário, e bem sabemos que nesse exato momento milhares de pequenos gênios estão em suas casas, pensando a mesma coisa que nós, escondidos atrás de seus pensamentos rápidos, cortantes e ferinos. E nessa parte do poema eu me exaltaria mais ainda pra dizer em alto e bom som: Gênio? Neste momento cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, e a história não marcará, quem sabe?, nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!

Portanto, e satisfeita com o mínimo que posso alcançar – quem dera fosse a imortalidade – eu me deixo levar pela contemplação, e gozo, dos momentos que posso vir a viver. E creio que, assim como Álvaro de Campos, em algum momento desta minha vida eu direi que vivi, estudei, amei e até cri, e hoje não há um mendigo que eu não inveje só por não ser eu. E todos os cavalos selados, sem exceção, terão cavalgado por essas quatro ações que fazem a vida de um simples mortal (assim como nós): viver, estudar, amar e crer. E quando eu perceber que todos os cavalos selados que montei não conseguiram me ajudar a fazer de mim o que não soube, e o que poderia fazer de mim eu não o fiz, nesse momento então eu simplesmente escreverei esta história pra provar que sou sublime. E quem sabe então, dessa forma, eu finalmente alcance a genialidade? E enquanto nem você, ou eu, a alcançarmos - o que nos excluiria do sistema atual e nos levaria para um outro, sem dúvida mais elevado – enquanto não existir a genialidade, creio que poderemos nos divertir com o humano que há em você, e em mim.

H., imagino que não esteja entendendo direito onde quero chegar com essa história toda... A princípio minha intenção era apenas lhe dizer que os cavalos selados fazem parte da vida, e que fica ao nosso cargo montarmos, ou não, nas boas oportunidades que aparecem vez ou outra. Não, não estou querendo lhe convencer de nada, muito antes disso - até porque seria uma tolice sem tamanho, e uma catástrofe sem precedentes, se eu pretensiosamente me julgasse no poder de convencer quem quer que fosse de alguma coisa– mas atente-se para o fato de que, extintas todas as possibilidades de felicidade utópica, o que nos resta é esse pouco de rédea que podemos tomar posse, com pulsos firmes, para conduzir a carruagem para paisagens mais agradáveis que as que nos acostumamos a ver, cotidianamente.

me empreste seus olhos
que eu também preciso enxergar
todas essas coisas boas que você diz
que estão dentro de mim

me empreste seus olhos
e eu me verei de outra forma
tomada de um novo corpo
com um novo jeito de andar,
com um novo brilho nos olhos

me empreste seus olhos
e em contrapartida te dou os meus
e você se enxergará
com a dignidade que meus olhos te vêem
com a reverência que meu olhar presta à tua pessoa

e então, de olhos trocados,
meus olhares serão seus
seus olhares serão meus
e ambos, esses olhares agora cúmplices,
enxergarão apenas um horizonte
pra onde vão todos os cavalos (bem) selados.

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